Muitos dos meus alunos, acostumados com minha atuação especificamente na área de ciência e tecnologia se surpreendem ao se darem conta que também escrevo ficção.
E uma das perguntas de praxe é essa que destacamos no título, ou de forma mais pessoal:
Por que eu escrevo ficção científica?
Existe uma resposta, que ultrapassa a obviedade do fato de eu simplesmente gostar do gênero.
É muito mais que isso.
Eu considero o gênero ficção científica um excelente ativador da imaginação e uma ótima porta de entrada para o pensamento científico.
Aliás foi exatamente assim que ocorreu comigo.
Eu recordo da criança que fui com muita alegria.
Dessa forma não existe espaço para o simples saudosismo.
Mas sim, para uma determinação em lutar para que todas as crianças do mundo possam ter uma infância tão feliz assim.
Fã contumaz de filmes de ficção científica, como as séries televisivas Jornada nas Estrelas, Perdidos no Espaço e Os Invasores, bem como da literatura de ficção científica indo de H.G Wells e Júlio Verne até Arthur Clarck e Ray Bradbury eu me percebi apaixonado por temas como o espaço e o tempo, vida em outros planetas e – claro – transformações químicas .
Foi a minha porta de entrada para a ciência.
Eu queria ser cientista.
Uma vez tendo cruzado os seus batentes nunca mais quis sair.
E nesse quesito Einstein mais uma vez acerta no alvo quando diz que a imaginação é muito mais poderosa que o conhecimento.
Se a necessidade é a mãe da invenção — a imaginação é o seu principal motor.
Mais tarde encontrei outros escritores fantásticos como o nosso querido mestre André Carneiro e o preferido de Hollywood, o escritor norte americano Philip K. Dick.
Em uma de suas antologias, K. Dick nos premia com algumas considerações que nos ajudam a responder sobre o porquê da Ficção Científica e também aprofundar essa discussão.
Abaixo compartilho com o leitor algumas partes dessas considerações, numa tradução livre desse humilde articulista.
Evidentemente o tema é muito grande e prometo retomá-lo em outros artigos.
O texto na íntegra você pode encontrar no livro THE BEST OF PHILIP K. DICK, da Del Rey Books.
Com a palavra o premiadíssimo escritor de Blade Runner:
“A premissa básica que domina os meus contos é que, se eu alguma vez me encontrasse com uma inteligência extraterrestre (mais comumente chamada de “ser de outro planeta”), teria muito mais o que dizer a ela do que ao meu vizinho do lado.
O que as pessoas na minha rua fazem é pegar o jornal e a correspondência e sair dirigindo os seus carros. A única atividade deles ao ar livre é cortar a grama.
Certa vez bati na porta do vizinho para verificar o que acontecia atrás dela. Eles estavam assistindo à TV.
Você seria capaz, ao escrever um romance de ficção científica, de postular uma cultura baseado apenas nessas premissas?
Esta sociedade, certamente, não existe, exceto talvez na minha imaginação.
E não há muita imaginação envolvida.
Quando se vive imerso num mundo onde há pouca fantasia, a saída é fazer contato, em sua mente, com outra civilização que ainda não nasceu.
Ao ler FC você está fazendo a mesma coisa que eu faço quando a escrevo; o seu vizinho é provavelmente uma forma de vida alienígena para você, assim como o meu é para mim.
Os contos são tentativas de recepção — de ouvir vozes de um outro lugar, muito distante, sons muito débeis, mas importantes.
Eles somente são ouvidos tarde da noite, quando, em nosso mundo, o movimento e o alarido de fundo diminuem. Quando os jornais já foram lidos, a TV foi desligada, os carros foram estacionados em suas diversas garagens.
Então, baixinho, ouço as vozes de uma outra estrela (certa vez eu cronometrei, e a recepção é melhor entre 3h00min e 4h45min da madrugada).
É claro, eu não costumo contar isto às pessoas quando elas perguntam: “Diga, de onde você tira as suas ideias?” Respondo apenas que não sei.
É mais seguro.
Vamos então pegar esses contos e assumir que eles são (um) recepções embaralhadas misturadas com pura criatividade e (dois) uma alternativa para os comerciais de comida de cachorro em cores vibrantes na TV.
Ambas passam ao largo de tudo aquilo que fica ao alcance mais imediato. Essas duas pressuposições vão o mais longe possível. Varrem o vazio e voltam com alguma coisa a relatar: que o universo está cheio de intrigas, de vida, de atarefadas entidades perseguindo determinadas os seus próprios objetivos, alheias aos interesses de outros, alienadas de seus vizinhos e, mais que tudo, se perguntando quem poderiam contatar se tudo o mais der errado.
Se perguntando quem vive como elas; se perguntando, quem sabe, sobre nós.
Estes contos, em sua maioria, foram escritos quando minha vida era mais simples e fazia sentido.
Eu podia notar a diferença entre o mundo real e o mundo sobre o qual escrevia.
Eu costumava capinar a horta, e não há nada de fantástico ou ultradimensional no capim-da-roça a não ser que você seja um escritor de FC, caso em que logo estará olhando para o capim-da-roça com desconfiança, cismando quais serão os seus verdadeiros motivos? E quem os enviou, para começar?
A pergunta que sempre me via fazendo era: O que é aquilo na realidade?
Parece ser apenas capim-da-roça.
É isso que eles querem que pensemos.
Um dia, os disfarces de capim-da-roça vão cair por terra e sua verdadeira identidade será revelada.
Mas então o Pentágono já estará cheio de capim-da-roça, e será tudo tarde demais. O capim-da-roça, ou o que nós tomamos por capim-da-roça, ditará os termos.
Minhas primeiras histórias tinham premissas como esta.
Mais tarde, quando minha vida pessoal se tornou complicada e cheia de episódios infelizes, a preocupação com o capim-da-roça de alguma forma se perdeu.
Fiquei acostumado ao fato de que a maior dor não desce zunindo de um distante planeta, mas ascende das profundezas do coração.
É claro, ambas as coisas poderiam acontecer; sua esposa e seu filho poderiam deixá-lo e você poderia acabar sozinho numa casa vazia sem nada pelo que viver, e ainda por cima os marcianos poderiam abrir um buraco no seu telhado e agarrá-lo”.
Em resumo, K. Dick traduz muito daquilo que sinto sobre a ficção científica, sobre a literatura e, em extensão, sobre a arte como um todo.
Um sentimento que ganhou expressão nas palavras de Nietzsche:
“A arte existe para que a realidade não nos destrua.”
E para você querido leitor, querida leitora: — Por que ficção científica?
Artigo de Mustafá Ali Kanso
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